Crônica 2 | O Gigolô das Palavras

em 2.12.13
Que
tal começar a semana lendo uma crônica do Luís Fernando Veríssimo?

Conheci-a na especialização em Assessoria Linguística e adorei! Com humor, o autor nos dá verdadeira lição do que realmente importa na comunicação escrita ou verbal: entender-se com o outro.

O Gigolô das Palavras

Quatro ou cinco grupos diferentes de alunos do Farroupilha estiveram lá em casa numa mesma missão, designada por seu professor de Português: saber se eu considerava o estudo da Gramática indispensável para aprender e usar a nossa ou qualquer outra língua. Cada grupo portava um gravador cassete, certamente o instrumento vital da pedagogia moderna, e andava arrecadando opiniões. Suspeitei de saída que o tal professor lia esta coluna, se descabelava diariamente com suas afrontas às leis da língua, e aproveitava aquela oportunidade para me desmascarar. Já estava até preparando, às pressas, minha defesa (“Culpa da revisão! Culpa da revisão!”). Mas os alunos desfizeram o equívoco antes que ele se criasse. Eles mesmos tinham escolhido os nomes a serem entrevistados. Vocês têm certeza que não pegaram o Veríssimo errado? Não. Então vamos em frente.

Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que deve ser julgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer “escrever claro” não é certo, mas é claro, certo? O importante é comunicar. (E quando possível surpreender, iluminar, divertir, comover… Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a ver com Gramática.) A Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas mortas, e aí é de interesse restrito a necrólogos e professores de Latim, gente em geral pouco comunicativa. Aquela gravidade sombria que a gente nota nas fotografias em grupo dos membros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação total pelo Português ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português morra para poderem carregar o caixão e escrever sua autópsia definitiva. É o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas ele sozinho não informa nada, como a Gramática é a estrutura da língua mas sozinha não diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre si em Gramática pura.

Claro que eu não disse tudo isso para meus entrevistadores. E adverti que minha implicância com a Gramática na certa se devia à minha pouca intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas — isto eu disse — vejam vocês, a intimidade com a Gramática é tão dispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria. Sou um gigolô das palavras. Vivo às suas custas. E tenho com elas a exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não raro, peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Se bem que não tenha também o mínimo escrúpulo de roubá-las de outro, quando acho que vou ganhar com isto. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito.


Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de um namorado ou com a tediosa formalidade de um marido. A palavra seria sua patroa! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair com elas em público, alvo da impiedosa atenção de lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma conjunção. A Gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda.


(Luís Fernando Veríssimo)
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Fonte: VERÍSSIMO, Luís Fernando. In. LUFT, Celso Pedro. Língua e liberdade: por uma nova concepção da língua materna e seu ensino. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 1985. p.14-16.
Considero este texto genial! 
Faz pensar que mais importante do que escrever certo, é escrever claro.

E você? 
É um gigolô das palavras?

5 comentários:

  1. Oi Fran,
    tudo bem?
    Pergunta difícil essa, parece mais uma armadilha, igual a que tentaram com o autor no texto (risos...).
    Quando falamos em sentimentos, tanto as músicas como os textos, podem nos envolver de tal forma, intensa, verdadeira, que nem nos preocupamos com o léxico e nem com a gramática.
    Por outro lado, por exemplo, na vida profissional de uma pessoa, o uso correto da língua é imprescindível, com exceção dos Veríssimos da vida.
    Volto a dizer, pergunta difícil essa....
    mas adorei o texto, super divertido mesmo.
    Beijinhos.
    Cila- leitora Voraz
    http://cantinhoparaleitura.blogspot.com.br/

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  2. Poxa Fran, essa crônica me fez refletir bastante... Sempre fico preocupada em 'escrever certo' que, às vezes, esqueço de 'escrever claro'. Todo mundo deveria ler essa maravilha do Veríssimo. :')

    Beijos,
    www.procurei-em-sonhos.com

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  3. Oi sua linda :)
    Eu sou uma gigôlo das palavras, apesar de adorar o português, a gramátia e eu não nos entendemos. Acho que se o leitor consegue entender claramente o que tu escreveu, não é necessário seguir as regras ao pé da letra. Claro, isso é minha opinião. kkkkkkk

    Beijos
    www.booksandmovies.com.br/

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  4. Nossa, adoro as crônicas desse autor, são sempre tão bem humoradas e verdadeiras! Adorei o texto, acho que nunca tinha lido esse dele, apesar de sempre querer ler o que ele escreve. Acho que a gramática é algo extremamente importante, mas muitas pessoas esquecem que ela sozinha não vale de nada. Ótimo texto!

    memorias-de-leitura.blogspot.com

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  5. Já conhecia essa rs Realmente, genial.
    Luis Fernando Veríssimo é um dos meus cronistas favoritos.

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